A pandemia nos esfrega na cara a presença da morte. Num mundo desenhado por extraordinárias conquistas científicas e tecnologias, a doença moral é um desalinho.
De início, quisemos vê-la como um acidente — uma gripezinha, como disse um idiota importante —, mas ela instalou uma indesejável rotina com a morte. Esse outro hóspede, indesejado por um estilo de vida fundado no conforto, no individualismo e numa atenção ao bem-estar físico.
A pandemia coloca em jogo algo inimaginável: a competição entre a enfermidade que obriga o isolamento e um modo de vida fundado na liberdade das trocas que engendraram um imenso poder sobre a natureza e outros seres humanos. Um terremoto ou guerra perturba menos que a pandemia. Morrer defendendo o seu país é um ato heroico localizado, muito diferente da tristeza de morrer por um vírus globalizado que levanta suspeitas sobre nosso modo de viver.
Todos os países sofrem com a pandemia, que nos revela como a infecção pelo vírus é mais eficiente que nossas defesas permanentemente filtradas por fronteiras, contratos, partidos, ideologias e interesses. Um vírus não ataca outro vírus, mas a História é uma fileira de mortais competições e extermínios.
Saber que morremos é um aprendizado. Mas é preciso negar a morte para viver?
A imortalidade, conforme a lenda e o livro de Simone de Beauvoir “Todos os homens são mortais”, é a mais intensa negação do humano. Eu li o livro com 25 anos e, nesse intervalo que meus 84 separam o rapaz imortal do velho mortal, fui visitado pela morte, que — além do sofrimento — me fez refletir sobre duas profundas advertências da escritora. A primeira diz o seguinte: “É preciso muita força, muito orgulho ou muito amor para crer que os atos de um homem têm importância e que a vida vence a morte”.
Compreendo a dureza dessas linhas. Já a segunda expõe uma exigência maior: “Não se pode”, assevera, “esperar nada do mundo. Esse é o sentido do verdadeiro amor pela humanidade”.
Hoje entendo como esse desprendimento honroso nos torna menores e maiores do que podemos imaginar.
Um mote americano diz: “Tudo o que vai, volta”. Os que se vão jovens não têm encontros marcados com suas vidas. Os velhos, entretanto, vivem desses encontros e
são surpreendidos por suas trajetórias. O mal pode virar bem; e o bem, indiferença e desonestidade. Nada, na vida de quem viveu lendo e escrevendo, é mais reconfortante do que descobrir os momentos nos quais compôs mal ou bem alguma coisa.
Minha devoção pela escrita vem da alma e do coração. Do âmago que os textos acadêmicos geralmente sufocam, descubro o implacável limite que o ato de escrever impõe ao escrevinhador. Mais: só sai do ramerrão da fórmula feita, imposto pela moda ou pelo momento histórico, quem correu o risco de pôr corpo e alma no rabisco.
Diz uma fábula que a idade traz sabedoria, mas afirmo que, quanto mais velho fico, mais ignorante me vejo no escuro espelho do mundo. Numa genealogia, nós situamos os mais velhos na parte superior, e assim reproduzimos a diagramação divina, cujo lugar não pode ser nesta terra de clima instável, limitada por rios, montanhas, geleiras, florestas, mares e propriedades, mas num esplendido e estável céu. Um Deus onisciente, onipotente e onipresente só pode estar num plano superior, além da velhice e aquém da criação.
Mais realista do que esse desenho é a concepção dos índios apinayé, que situam os velhos na parte de baixo da “árvore genealógica” porque eles são a “raiz” da sociedade. E, como tal, estão no fundo da terra, e não no alto do céu.
A visão dos índios é pertinente e, a meu ver, mais estimulante e realista do que a nossa. Os velhos não estão num plano superior, mas num nível original, como pilares e alicerces da sociedade. Eles são fundadores: são os pés e as pernas das famílias e moradas que formam o seu povo.
Ademais — e isso digo eu — , os antigos têm suas manias, gostos, vaidades e pecados, além de erros que neles são vistos como inadmissíveis reincidências. Mas, tendo nascido primeiro e trazido para este profundo vale de lágrimas um bando de gente por pleno uso de suas boas intenções ou por descuidos, os velhos são o pé das aldeias. E, se conseguem a graça de viver muito, podem, mesmo com as lanternas da popa do poeta S. T. Coleridge, enxergar o que engendraram com seus amores, desenganos, lágrimas e trabalho. Nada mais grato para quem faz tempo está enterrado do que ver seus frutos.